quinta-feira, 21 de julho de 2011

Crônica do Inverninho camarada, ou qualquer estação vale a pena, se a alma não for pequena.

O mundo está muito lento, embora às 4h da manhã tenha passado por aqui, ruidosamente, o vendaval que causou problemas em outras cidades. Clima de inverno cinza, molhado, frio. Um silêncio no bairro, só cortado por algum carro que passa em alguma direção. Uma moto, um ônibus, cachorros jaguaras. Verdade seja dita, um inverninho simplório, que em outras partes do mundo seria desacreditado como tal. Não é aquele frio de doer, nada muito extremo ao contrário da serra, mais de 900 metros acima do mar. Lá a vida é mais áspera, mais pesada para quem tem que - e pode - carregar muita roupa. Mesmo assim, ainda não é o sr inverno enregelante. Em São Joaquim, inventaram de comprar uma máquina que produz neve, para agradar os turistas que vão até lá para sentir outras temperaturas. Corremos atrás de emoções que nos façam sentir vivos: tostar no sol do verão, arrepiar-se de frio no inverno. Tudo que nos faça sentir vivos, porque o tédio é vizinho da morte.

Estas ruas vazias, sem meninada descalça a gritar e correr, jogando bola, empinando pipa, ou indo a padaria comprar um pãozinho, parecem fantasmagóricas. Lembra aquela música "Tem dias em que a gente se sente como partiu ou morreu...A gente estancou de repente, Ou foi o mundo então que cresceu..." Sobrevoa o bairro, um helicóptero da polícia, para lembrar que a guerra continua lá fora. As crianças devem estar guardadas, de volta à escola, após mais de 60 dias de greve dos professores. "Guardadas" porque os pais parecem se preocupar sobretudo com que os filhos tenham um lugar para ir ocupar-se, para deixá-los livres. Educação para valer quem sabe teremos em mais alguns giros deste mundo-peão/pião solto no espaço.

Para completar a musicografia de inverno:

...Quando o inverno chegar, eu quero estar junto a ti... (mas o título da música é Primavera)
... quero que vc me aqueça neste inverno e que tudo o mais....

Salve Chico Buarque, Roberto e Erasmo Carlos, Tim Maia ...que dão significado a todas as estações da nossa vida. Qual a sua música de inverno?

http://letras.terra.com.br/chico-buarque/45167/
http://letras.terra.com.br/roberto-carlos/48671/
http://letras.terra.com.br/tim-maia/48934/

quinta-feira, 31 de março de 2011

Olá Hemingway - Adeus às armas (A farewell to arms)


Em "A farewell to arms" (Adeus às armas - 1929), um dos personagens de Ernest Hemingway se diz "groggy". Ele remou num bote a noite inteira, para fugir da Itália, cujo exército desertou, e chegar na Suiça. Ao seu lado a amada, uma jovem enfermeira britânica. Pensei que iam se afogar em meio à tempestade e a escuridão. As mãos dele estão cheias de bolhas. A moça está grávida, mas feliz e tranquila conforta o oficial. Correm o risco de ser presos, o que ainda é bem melhor do que ser fuzilado pelos italianos. O barman do hotel arrumou-lhes o bote, bebida e alguns sanduiches, além de orientar sobre como vencer os 35 km de lago, rumo ao país vizinho.

A passagem lembra que em português usamos a palavra "grogue" também e com significado similar. "Grog: a mixture of spirits, esp. rum and cold water; groggy: drunk, unsteady, shaky", segundo o dicionário Webster. Grogue: diz-se de quem está cambaleante, como quem tomou excesso de bebida alcoólica, conforme o minúsculo dicionário de português da Melhoramentos, que se vende pelas lojas de 1.99. A
curiosidade seguinte é saber quem emprestou a palavra de quem, e o que acontecerá agora com o oficial americano desertor e a enfermeira britânica.

O romance até o momento não me pareceu "bombástico", embore relate tempos de guerra, com soldados bebendo muito, mas cumpre aquela mágica de nos transportar a outros tempos e sensações. Em particular, me espanta estar em contato com Hemingway, um homem que deu cabo da própria vida. É como se eu quisesse lhe perguntar o porquê e pedir-lhe que não fizesse isso. Ainda poderia viver e escrever mais coisas interessantes, para nos ocupar enquanto remamos no bote da vida, sem saber o que nos espera na margem de lá.

As realidades se misturaram, como mágica, enquanto eu lia o "Adeus às armas", de Hemingway, que já me encantou há uns trinta anos, quando era mocinha leitora de best-sellers baratos de banca de jornal. Foram quatro horas na escuridão de uma estrada de serra deserta, dentro de um ônibus, sabendo que se chovesse ficaríamos presos entre barreiras. Talvez alguma caísse sobre nós. Há três semanas tentavam consertar a estrada e o gasoduto em baixo dela. Só o vermelho das luzes traseiras dos carros e caminhões iluminava a noite na descida da serra. O oficial americano remava no bote rumo à Suiça, eu lia para amenizar a impaciência e o cansaço de quatro dias de viagem. Torcia apenas para que nenhuma tragédia nos assombrasse em meio à noite.

Ernest suicidou-se no ano em que nasci - 1961, usando um fuzil de caça. Tinha 61 anos e problemas de hipertensão, diabetes, arteriosclerose, depressão e perda de memória. Talvez tenha seguido o exemplo do pai, que se suicidou em 1929, por problemas financeiros, a famosa grande depressão. Gran finale para um Nobel de Literatura (1954 - "O velho e o mar", que também ganhou o Prêmio Pulitzer), cuja vida foi mais que um romance de guerra e paixões.

Para aprender inglês, nesta brincadeira de correr atrás das palavras, que se mostram e se escondem, o título de Hemingway faz lembrar de "arms" = braços. Pequena palavra que tem tantos desdobramentos. "Já não sonho, hoje faço com meu braço meu viver". Os braços do aconchego da família, amigos, entes queridos. O braço do vigor físico, que saúda na chegada e na partida, que trabalha ou que destrói. "Arm" que acaba com a vida em um estampido.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ernest_Hemingway
http://en.wikipedia.org/wiki/Arm
http://news.change.org/stories/a-farewell-to-arms-for-the-ten-dollar-taliban-underway

Sobre o filme:
http://soniassrj.blogspot.com/2009/10/adeus-as-armas-farewell-to-arms-1957.html

domingo, 6 de março de 2011

O passarinho no armário


Um passarinho morto era só um dos detalhes interessantes que a tia encontrava no armário bagunçado da sobrinha. Sentia-se envergonhada quando ela resolvia aplicar os talentos de organização e invadia seu mundo, sem prévio aviso. Era querida, sotaque de barriga verde, baixinha e gordinha. Seus dedinhos arrebitados (como seu nariz) deixavam tudo dobradinho, na mais perfeita ordem. Não duraria nem dois dias. No vai e vem de menina-moleque não havia tempo para tais delicadezas.

A tia largava suas lições falando baixinho e amistosamente: menina que não fecha a porta do armário e o deixa bagunçado não vai casar. Parece que tinha razão. Até fechei a porta algumas vezes, mas arrumar era outra história. Despencava tudo enquanto procurava algo, misturava roupa limpa com usada. Sempre havia algo mais interessante ou urgente a fazer. A mãe berrando e chamando porque era hora disso ou daquilo. Deve ser uma espécie de revolta que faz com que adolescentes e jovens universitários se notabilizem por suas bagunças totais. Horror era o apartamento de uma rapaziada amiga nos tempos de "facul". A pia, um banhadão cheio de limo. Toda a louça e panelas da casa eram usadas e ali amontoadas, até que fosse inadiável chamar alguém para resolver a situação. Não eram relapsos, mas imundos.

Morávamos ao lado de um campinho de futebol, havia verde e matinhos aos redor. De um pequeno morro, despencávamos em carrinhos de "rolimã", precários, levantando poeira, ralando as pernas e braços. Neste matinho, os meninos faziam "maroteza", e alguém corria avisar aos adultos que fulano fazia sicrano de mulherzinha. No brejo ao lado, a gurizada caçava rãs ou sapos, não saberia dizer a diferença. Ficava bem longe disso e a penca de sapos pendurados em um arame era o que havia de mais repulsivo. Mesmo adulta tive pânico de sapos por muito tempo. Depois amenizou e um deles ganhou o nome de Godzila. Servia-me de modelo para fotos. Vivia no canto do gramado de minha casa. Eventualmente me fazia dar berros e saia saltando de volta ao esconderijo. Jamais o mataria. Os camundongos são mais repulsivos. Nem para fotos os quero. Hamsters são ratos de boutique, ainda que graciosos.

O passarinho morto no armário de criança era tentativa de salvar o que os meninos malvados matavam com espingardinhas de pressão. Um perigo. Aquela criançada toda da vizinhança reunida ali e alguém atirando em passarinhos. Passava mercúrio no ferimento, acomodava o bichinho embrulhado em alguma roupa e esperava o milagre, que não acontecia. A morte era irreversível. Foram muitos funerais no quintal. Uma choradeira, certa manhã, ao ver morto um dos filhotes da gata. Assim vamos crescendo e contabilizando perdas, dores, descobrindo os mistérios. O passarinho morto no armário.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O pequeno vizinho


Doeu-me ver a mochila novinha voando para cima do caminhão. Procurei bastante para comprá-la em oferta e a estava guardando para a volta às aulas. O garoto me perguntou se teria uma para lhe emprestar. É claro que os dias passaram e ele não me devolveu. Ficou sem graça quando me encontrou. "Vou lavar para devolver, sujou quando cai de bike...". Respondi que lhe dava de presente para que fosse bem na escola. "Diga a seu pai que você merecia uma bela mochila para a volta às aulas".

Logo percebi que não era só a mochila que estava sendo jogada na carroceria do caminhão. Cobertores,  bolsas, e por fim um ventilador de coluna. O menino foi embora sem olhar, nem dar tchau, em pé em cima do caminhão, segurando o ventilador. O pai não se preocupou, pelo jeito, que ele fosse cair. Fiquei pensando se ainda o veria, talvez volte para ver os conhecidos que fez aqui na rua.

Onze anos, um sorriso lindo e cativante. Tomás vivia só com o pai e deve ter ficado menos de dois meses, como inquilino de um dos cômodos da casa da frente. Mais uma criança vagando pelo mundo, em companhia de um inconsequente. Passava os dias sozinho. Às vezes o pai vinha para o almoço. Trabalhava de motorista de caminhão, entregando bombonas de água. Vieram de Curitiba, o pai estava no seguro-desemprego, a mãe havia casado de novo. Havia uma vó.

Logo nos primeiros dias, o pai o humilhou publicamente, de cinta na mão, pela rua. Era o início da noite e a conversa chamou a atenção dos vizinhos. Tudo porque na brincadeira havia machucado o rosto, perto do olho. O pai insistia em cobrar responsabilidade do garoto que havia feito isso. Acabou na porta dos vizinhos do norte, gente boa e reservada. Ficamos preocupados porque o Pernambuco era homem de poucas palavras e tinha um revólver, além de um rothweiller. A conversa foi comprida, mas creio que graças à esposa, sempre sorridente, evangélica, os ânimos foram serenados. Mesmo assim, Tomás voltou para casa apanhando de novo a cintadas.

Ainda assim adorava o pai, e falava em juntar dinheiro para comprar-lhe um óculos de presente. Pai que havia sido alcoolatra e motorista de ônibus. Ás vezes saia de caminhão para acompanhar o pai na entrega de água mineral pela região. Boa parte do tempo, passava os dias sozinho, perambulando pela rua ou mesmo muito longe. O menino fez muitos amigos entre a gurizada da rua, e inimigos também. A filha da dona da casa o acusou aos berros de ser o responsável pelo roubo da bicicleta dela, de haver deixado o portão aberto e trazido maconheiros para dentro de casa. Ironia é que o marido dela era maconheiro e não valia nada. Ele mesmo estando desempregado, pode ter consumido a bicicleta.

Lamentavelmente não era a primeira criança em situação precária que eu conhecia graças ao cortiço da vizinha da frente. Houve casos piores. Uma carioca preguiçosa, originária da rocinha, não saia para trabalhar e mandava a menininha de nove anos catar reciclado para vender. O menino pequeno de uns cinco anos era alimentado no peito, por comodidade. O pai deste filho a abandonou, após inúmeras brigas em plena rua, além de ter batido forte na menina, que não era sua filha. O conselho tutelar foi chamado. Juntaram-se novamente e continuam perambulando pelos cortiços do bairro. A carioca vaidosa, de cara bem pintada, agora ostenta um barrigão, que logo será o terceiro filho a andar sofrendo com eles pelo mundo.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Jackie e Raide


As duas amigas estavam sentadas na varanda, tomando um mate e monitorando o movimento da rua.
- Nossa, a mulher é feia e ainda por cima deixa o cabelo feito bombril comprido, espichado e pintado de preto. Para completar, usa uma blusa frente única de lantejoula prateada, que deixa atrás as pelancas à mostra chacoalhando...

- Deixa de ser rabugenta Raide. Ela se sente bem e busca ser bonita. Pior é você que já desistiu de se enfeitar.

- Ah tá Jackie, me poupe! Missão impossível. Para espantar ainda mais, ela me sai em dupla, com outra igualmente horrorosa de cabelo arrepiado, pintado de vermelho! O que é isso? Elas chegam numa idade pavorosa e acham que píntar o cabelo de vermelho vai dar um "up"? Para pintar o cabelo de vermelho uma mulher tem que ser bonita. Estas coroas feias deveriam se pintar de invisível.

-Amiga, que ressentida! Elas provavelmente têm quem aprecie o material, nem que seja um barrigudo daqueles que gosta de "queimar uma carninha" no domingo, arrotar maionese e gritar vendo futebol, enquanto coça os joanetes, estendido no sofá. E nós ficamos aqui com este ar de "O diabo veste Prada", made in Brusque, sozinhas.

- kkkkkk Imagine aquela do filme passeando pelas ruas do bairro, para arrumar inspiração para a última moda em NY. Raide, por falar de Brusque, precisamos dar uma passeadinha por lá para comprar uns presentinhos para os próximos niver da família. Quem sabe dou uma frente única de lantejoula prateada para a cobra da minha cunhada????

- Beleza, a Antônio Heil que nos aguarde. E os marrecos que se cuidem!
- Desta vez vê se não cai no radar por excesso de velocidade. Aquela multa é de lascar!

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O bêbado bate à porta

24/09/05 - O bêbado empacou no portão de lata e fez a campainha disparar. O jeito foi tirar o interfone do gancho. Fui lá espiar quem seria a altas horas. "Eu te mato", balbuciava ele para a cachorra que latia por baixo do portão. "Vai tomá no cú", gritava para os outros cachorros da vizinhança que latiam em solidariedade. Fiz a cachorra calar-se e fiquei observando o homem. Em pé, apoiado no muro com uma mão, ele falava sozinho. Calça jeans desbotada, tenis cinza, uma japona. Barbudo e de cabelo crespo, com uma rodela calva no alto da cabeça. "Tenho fome", disse uma vez, como se falasse com o portão. "Eu te mato, sou lageano", repetia ao cachorro. Desisti de falar com ele. Chutava o portão de lata, fazendo barulho. Deu medo. Podia invadir a casa. Os cachorros atacariam. Felizmente havia vizinhos. O homem era forte. Depois que foi embora, abri o cadeado e desentalei o botão da campainha, que havia ficado preso e tocava sem parar.

Dentro de casa, dei graças aos céus por não ter que suportar nenhum bêbado e suas agressões, como acontece com tantas mulheres, famílias. Celebrei meu parco e valioso conforto, a minha segurança. Fiquei pensando onde o bêbado moraria, e torci para que chegasse lá mais sóbrio, sem maltratar ninguém.

Sinfonia do amanhecer

28/05/05 - O dia está cinza e carregado. Nem quente, nem frio. Corre um ventinho suave e pode-se estar de manga comprida, chinela e meia. As árvores meio peladas e desbotadas. Acordo com uma profusão de sons da vizinhança. O samba no rádio do vizinho de trás, que capina o terreno. O mecânico que arrasta ferramentas como alma penada de castelo mal-assombrado e testa o motor de um carro acelerando, num vai e vem ensurdecedor. Passarinhos gorgeando. Cachorros latindo, tanto por perto quanto ao longe. Criançada e carros. Para coroar a sinfonia do bairro, um grande foguetório marca a inauguração de habitações populares. Duzentas e 50 pessoas tiradas da precariedade da beira de um riacho fétido, para dar lugar a uma avenida. Os predinhos são um monumento à precariedade pública.

Segunda caneca de café, carregada de pensamentos, como as nuvens cinzas. Quero ficar recolhida neste sábado e domingo, arrumar a bagunça física ao redor, mas especialmente a mental. Agora passa um pequeno avião e uma moto, dando continuidade à trilha sonora deste sábado de agosto. Uma betoneira recebe, no seu looping, pazadas de areia, brita, cimento...